domingo, 31 de maio de 2009

O porta-vozes

Era muito propenso a frases de efeito. Sua cabeceira era lotada de livros de auto-ajuda e sabedoria chinesa. Sua inteligência e capacidade de resolver problemas eram condicionados à memória que tinha de frases impactantes e famosas. Justiça seja feita, neste quesito era catedrático. Quando a fábrica foi à falência, lembrou-se de Nietzsche: "O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte". Reergueu-se. Após anos de boemia, lembrou-se de Quintana: "Amar é mudar a alma de casa". Casou-se. Irritou suas colegas ao repetir Nelson Rodrigues: "As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado".

Mas era uma pessoa amável. Bom orador, tomava para si as responsabilidades coletivas. Discursou em pátios, organizou passeatas, liderou greves. Com a ajuda involuntária de Herbert de Souza:
A tecnologia moderna é capaz de realizar a produção sem emprego. O diabo é que a economia moderna não consegue inventar o consumo sem salário!

Conquistou o amor e o respeito dos filhos educando-os com base em sua filosofia:
Uma geração constrói uma estrada por onde a outra trafega.

E como trabalhou, e como construiu. Seus filhos se formaram, formaram outras famílias e veem o pai como uma espécie de bússola moral. Como diria Sócrates:
Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade.

Até o dia em que ele descobriu a seguinte frase:
"A vida é boa". (Machado de Assis)
Reza a lenda que esta foi a última frase proferida pelo Mago do Cosme Velho, em seus minutos derradeiros após o sofrimento de um câncer na boca.

Frase tão simples o tocou tão profundamente, que decidiu fazer dela, também, suas palavras finais. Machado de Assis é genial até na hora de morrer. Como é possível alguém que vislumbre com tamanha clareza a aproximação do fim e consiga ter inspiração para abalar vidas?

Pois foi o que acabara de ocorrer. "A vida é boa", dizia todas as noites, antes de dormir. Nunca se sabe quando a Indesejável lhe faria uma visita. Quando teve o ataque cardíaco, fez tamanho esforço para dizer as palavras que por pouco não resistiu de fato. Foi assaltado, mas só sabia dizer "A vida é boa" para os bandidos que, irritados, deram-lhe chutes e tapas e só não o mataram em respeito às suas rugas e cabelos brancos.

Hoje, porém, os médicos estão desacreditados. Sua doença progride rapidamente. Os remédios já não controlam as dores e os filhos sofrem ao ver um grande homem definhando. Mas a admiração que todos no hospital têm por ele é a mesma que conhecidos de outros tempos tinham. Já não pode mais comer, já não pode mais respirar sozinho, já não pode mais se mover sem sentir dores, mas nunca deixa de dizer:
— A vida é boa.

domingo, 10 de maio de 2009

Pelo Avesso

Há muito, muito tempo guardo isso pra mim. Evito entrar no mérito da questão pelo simples motivo de que, por mais que eu esteja certo (e estou, não duvide), para os novos criadores de dogmas eu sempre estarei errado. Eu e uma corja de 'direitistas', 'reacionários', 'racistas' etc. para ficar nas ofensas acadêmicas.

Mas ontem foi a gota d'água. Estava eu na livraria, folheando uns livros, vendo o preço de CDs e DVDs (pela hora da morte) até que minha atenção se voltou para o nome de uma autora que gosto muito: Agatha Christie. O nome do livro era 'E não sobrou nenhum'. Até aí, nada demais. O estarrecedor era o que estava escrito em letras menores, quase como um subtítulo:

"Anteriormente publicado como 'O Caso dos Dez Negrinhos'".

Não, eu pensei. Deve haver um erro de redação aí. Talvez eles quisessem dizer "Publicado anteriormente a 'O Caso dos Dez Negrinhos'". Virei o livro e li a contracapa. Onde deveria haver:

"Dez negrinhos vão jantar enquanto não choveUm deles se engasgou e então ficaram nove"

Havia:

"Dez soldadinhos vão jantar enquanto não choveUm deles se engasgou e então ficaram nove"

As duas versões do livro da discórdia: em uma edição de 1981 e a nova, publicada no começo de 2009.

Incrédulo, larguei o livro na prateleira e parei para pensar a que ponto chegamos.

Para quem não conhece, este é um dos romances de maior sucesso da escritora, cujo título é inspirado em uma historieta infantil inglesa, onde cada um dos negrinhos do título acaba morrendo de forma brutal até que... não sobra nenhum. Bom, não vou discutir a adequação deste poema a crianças, mas o fato é que, Agatha Christie usou-o, sim, como fonte de inspiração para sua obra-prima. Lançado com o título original 'Ten little niggers' em 1939, enfrentou resistência nos Estados Unidos já em 1940, quando recebeu o nome 'And then there were none' para entrar neste mercado. Na maioria dos outros países, no Brasil inclusive, traduziu-se o título britânico. Até o ano de 2009, quando a praga do politicamente correto resolveu que a censura é a melhor maneira de alçar uma causa ao sucesso.

A América da década de 40 (me corrija, Psicopata, se eu estiver errado) era um país onde o racismo era política institucional, e os primeiros e tímidos passos em direção à igualdade racial estavam sendo dados. Em um ambiente como aquele, seria natural que termos como 'nigger', que ainda hoje é considerado um xingamento por aquelas bandas, fosse banido. O que não justifica a mudança do título aqui.

Será que ser chamado de 'negro' no Brasil também é xingamento? Ainda não (por enquanto, e pra algumas pessoas), mas o fato é que nós estamos andando para trás e colocando em prática aqui o racismo institucional. Às avessas, mas pronto pra gerar o mesmo ódio e intolerância que este tipo de política sempre gerou. Todo dia a gente vê uma cota aqui, uma ação afirmativa ali, não raro patrocinado pelo governo. Sempre com o argumento de que é uma forma de reparar o mal causado pelas elites burguesas ao bravo negro trabalhador.

Mudarão também a nossa cultura, o nosso folclore: com vocês, o Afrodescendentezinho do Pastoreio

Levar isto à arte, no entanto supera largamente os limites do tolerável. Nosso 'Boi da Cara Preta' virou 'Boi do Piauí' em algumas escolas, sabiam? Escolas! Daqui a pouco vão queimar livros. Vai acontecer uma nova Revolução Cultural, uma Revolução Cultural Racial. Mas os afrodescendentes (o termo 'negro' será proibido) continuarão a receber olhares desconfiados por onde passarem e as piadas racistas continuarão a ser contadas pelas mesmas pessoas que defendem a política racialista. Porque não ter preconceito no papel é muito fácil. Na vida real é mais fácil ser hipócrita.

Aliás, que raios de defesa dos negros é essa em que tudo relacionado à raça deve ser suavizado? Será que ser negro é algo tão abominável que se faz necessário o uso de eufemismos? Ah, pelo amor de Deus. Pior é ver que essa tendência é mundial. Digo, ocidental, pois no oriente médio os judeus e os muçulmanos estão mais preocupados em se aniquilar.

A única coisa boa dessa história é que, só vendo tudo virado pelo avesso é que podemos perceber que, pelo avesso, somos todos iguais. Esse tipo de absurdo nos faz observar o óbvio. E a noção do óbvio é o que mais faz falta no momento.