sábado, 21 de fevereiro de 2009

Assassinaram o Carnaval, é Carnaval o ano inteiro.

Começou assim: Nos primórdios da civilização, nossos ancestrais egípcios festejavam a época da colheita, que promovia a fartura e a fertilidade nas cidades à beira do Nilo. Mais tarde, os gregos mantiveram a essência do festejo, acrescentando outros elementos inocentes, como bebedeiras, bacanais, e todo tipo de prazer despudorado e ilimitado. Desfiles ocorriam pelas ruas, a euforia tomava conta das pessoas, escolas fechavam as portas, escravos eram temporariamente alforriados, a liberdade era total.

Depois, Nosso Senhor Jesus Cristo (para os que são cristãos, obviamente) foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos Céus e transformou este acontecimento na data mais importante do calendário cristão, religião praticada atualmente por aproximadamente 2 bilhões de pessoas.

Estes parágrafos aparentemente desconexos não teriam relação alguma, não fosse o sincretismo religioso que a evolução da sociedade proporciona. As festas pagãs que começaram há seis milênios foram recebendo influências de povos e épocas distintas e existem até hoje, conhecidas pelo nome milenar de carnaval. Já a ressurreição de Cristo é comemorada na mesma época em que os judeus comemoram sua libertação do Egito e a passagem para a terra prometida. Além da data, ambos os fatos recebem a mesma denominação: páscoa.

Ocorrida no primeiro domingo depois do primeiro equinócio do ano, normalmente em março ou abril, a Páscoa é precedida por um período de penitências e privações, uma forma lembrar o sacrifício de Jesus para salvar a raça humana e dar-lhe a oportunidade de viver no Paraíso ao lado de Deus. Este período, chamado quaresma, como o próprio nome sugere, dura quarenta dias (quarenta e seis, pra ser mais preciso). O início da quaresma coincide justamente com a festa da carne, o carnaval.

Só pra deixar as coisas claras: eu, cristão, comemoro a páscoa em abril. Antes disso, passo quarenta dias fazendo jejum de vários tipos de bebidas e alimentos e pago penitências por meus pecados. Antes disso, eu sei que tem uma festa chamada carnaval, conhecida pelo liberou geral. Eu posso beber o que quiser, comer o que e quem quiser, extravasar (como diz certa cantora de... carnaval) todos os sentimentos reprimidos pela pesada mão da Igreja etc. Sejamos sinceros. É juntar a fome com a (literal) vontade de comer. O carnaval é agregado ao calendário cristão, como um festejo que antecede o "retiro espiritual" que é a quaresma, cujo ápice acontece no fim da Semana Santa.

Resumo porco: eu, cristão, aproveito o tal carnaval pra barbarizar, já que eu vou passar por quarenta dias de sofrimento na tentativa de salvar essa minha alma pecadora. Mais humano que isso, impossível.

Pulemos então aos dias de hoje. A Idade média chegou ao fim, a quaresma mudou, o carnaval mudou, mas a sensação de "liberdade" que ele proporciona ainda é palpável na maioria dos foliões. Aí eu pergunto: que liberdade? O que a gente pode fazer no carnaval que não pode fazer na quaresma ou em qualquer outra época do ano? Num devaneio surrealista, se fosse na Idade Média, ver a rainha da bateria peladona no carnaval seria uma atitude típica da festa. Pessoas fazendo sexo louca e irresponsavelmente também. Comilanças e bebedeiras seriam o símbolo de uma data.

Mas hoje isso é comum todo dia. A gente não faz mais jejum na quaresma. A gente não se empanturra só no carnaval. A rainha da bateria não causa furor se aparecer peladona no carnaval porque ela já faz isso o ano inteiro. O carnaval é, hoje, só mais um feriado prolongado. Com a pequena diferença de que as pessoas tentam ser um pouco mais indecentes que no resto do ano uhahuahuahuahua. Mas é um pouco, só.

Antes que me interpretem equivocadamente, eu não estou fazendo uma crítica puritana. Somente uma reflexão. Não quero uma volta da quaresma e da Idade Média. Posso não ser um entusiasta dessa pretensa "liberdade" pós-moderna, mas sei bem o valor do carnaval que temos. Meu problema não é o Carnaval, pelo contrário, é o resto do ano. É essa "liberdade" carnavalesca que inventaram e te obrigam a exercê-la nos 365 dias e 6 horas da translação em torno do sol. É preciso beber como se fosse carnaval, se drogar como se fosse carnaval, fazer sexo como se fosse carnaval. Caso contrário, você não é livre. É um oprimido, um reprimido. Ah, pro inferno essa gente! Isso sim é repressão. Se eu sou livre, posso escolher não viver essa existência vazia travestida de subversão contestadora. Isso colava na década de 60, hoje não cola mais.

Dito isto, hoje tiro o meu chapéu de bamba pra alguns evangélicos que eu conheço. Eles pecam o ano inteiro, e aproveitam o carnaval pra fazer o tal retiro espiritual. Isso sim é ser subversivo de verdade. Boa folia pra quem chegou até aqui.

5 comentários:

????????????????? disse...

Apoiado!
Conheço deste mesmo tipo de evangélicos, eles são punk!
Mas apenas seguem o quê Deus ensinou - segundo eles.
Intolerância também é fruto de outras religiões... mas deixa, todos preferem viver na ilusão...
Ser livre dói e incomoda a todos... quem não quer, vive recalcado em falsas vidas que somente fazem para criticar quem fala ou age em nome próprio, por si próprio e não por pais ou até mesmo um senhor chamado de Deus...

Prof. Aline Costa disse...

" O carnaval é, hoje, só mais um feriado prolongado. Com a pequena diferença de que as pessoas tentam ser um pouco mais indecentes que no resto do ano"

Perfeito resumo de tudo!!
Não passa mais do que isto, e quem não se adequa é excluído. Não é a toa que o Brasil é retratado como um país de mulatas semi nuas e futebol.

Anônimo disse...

Err... Gostei da observação, Lerdo. "Carnaval" é praticamente uma justificativa à safadeza excessiva. Hoje mesmo me peguei falando isso - não que eu esteja fazendo safadezas por aí.
E eu ia até fazer um post sobre isso, mas basta um comentário aqui. Apesar dos "exageros carnais", digamos assim - e também não quero soar moralista -, achei bastante legal algumas coisas que vi lá pelo centro do Rio e que acontece em outros lugares também, eu creio. Para estar pelas ruas, ou você entra na diversão ou, caso não goste da folia predominante, aceite. E é interessante como as pessoas parecem entender isso; soam mais tolerantes nessa época em relação à diversão, brincadeiras, música em lugares impróprios [tipo uma batucada no ônibus em que eu estava e as pessoas até riam e participavam daquilo] e tudo mais. Parecem até mais conscientes: nunca vi tanto casal homo andando de mãos dadas e se beijando na rua. Há de convir que esse aspecto mais "liberal" - que está [ou ao menos deveria estar] aquém de religião e crenças - poderia ser atemporal.

[]s!

PS: não reli o comentário, desculpe se não me fiz entender. já é tarde e tenho que dormir, porque amanhã é dia de farra, quero dizer, de carnaval.

A Vilã disse...

Lido o/

O Lerdo disse...

Aline, depois de mais um carnaval na minha vida eu mudaria esta frase pra outra:

"O carnaval é, hoje, só mais um feriado prolongado. Com a pequena diferença de que as pessoas têm pouco mais lugares para ser indecentes em comparação com resto do ano."

Afinal, esses blocos, bailes e sapucaís da vida estão aí pra isso.